quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

LIBERTAÇÃO (conto inédito)

Amanhã é segunda-feira. Dia Mundial do Desânimo. Dia de atropelar os sentimentos maníaco-depressivos, de se reerguer, espremer os órgãos, tirar deles a vitamina indispensável para encarar de novo o velho dia, a antiga se-mana. Que horror! É isso que o oprime, e eles não entendem. Será que ninguém passa pelo que ele passa, pensa o que ele pensa? Droga! É insuportável viver quando se tem mais per-cepção das coisas do que o normal. Chamam isso de lucidez. Ele classifica de atentado vio-lento ao seu próprio eu. (Pode-se chamá-lo de assassino de si mesmo?) E se ele tenta – como antigamente, hoje não, não é assim tão louco! – expor essa vi-são, digamos, incomum em um grupo, ninguém lhe dá ouvidos. Ignoram e desviam o rumo da conversa. É quando se sente desgraçadamente só. A sensação é de ser um exemplar exclusivo da raça. Um exemplar esquisito. E pre-terido. Essa é apenas uma das várias formas de condenação. De prisão. Enquanto Billie Holiday entoa Do nothing till you hear from me, sua mente jorra pensamentos dispersos, desconexos. Mas ele é assim, jamais se entretém somente numa te-mática, numa ideia, por isso alguns indivíduos se queixam de não ser possível manter um diálogo consigo. Ele, que já sofreu muito por isso, hoje gargalha. Dizem que é muito ansio-so, seu pensamento veleja por diferentes mares ao mesmo tempo. E ninguém o acompanha por esses mares tempestuosos. É que temas longos o cansam. Um livro grosso, por exemplo, lhe dá repulsa. Gosta do entrecortado, do flash. Do freio súbito e eficaz – no momento em que se prepara para avançar o próximo sinal e o perigo atravessa o seu caminho. A traiçoeira morte. É um ser sem nexo. Com o mundo, com os demais seres, com suas próprias ideolo-gias. Porque as trai diariamente. A caminho dos quarenta anos e – solteiro, nem bonito nem feio (dá para o gasto), uma certa inteligência, alguma cultura, fuma um matinho aí de vez em quando, bebe além do socialmente, não reza, não crê em deuses-germinadores-do-mundo. É da Geração X. Já criaram esse grupo no Facebook? Geração X. Confuso e indecifrável. É o x de uma equação que até agora ninguém sequer soube armar, quanto mais solucionar. Um problema sem solução. Uma coisa indefinida. E aí? Como vai ser denominado na História da Psicologia Universal? Já está ficando tarde, quase uma da matina, e ele não tem sono. Indeciso está entre dormir mais uma noite e acordar, ou dormir para sempre, lá embaixo, na cama de concreto que lhe parece, nesse momento, mais aconchegante que a do quarto. Quem o guia é Clarice Lispector, o que o sacode é balada de house music. Regido por álcool, maconha e ecstasy. A mãe ainda não voltou da missa. Deve ter se esquecido do tempo na casa de algu-ma amiga, falando da vida dos outros, não sabem conversar sobre mais nada... Coitado de-le, que sempre se viu cético! Terá salvação? Quando morrer, sua alma vai para o inferno? Talvez nem o diabo o queira. Ninguém o quer! A rua está deserta. Todo mundo precisa dormir cedo, amanhã é dia de pegar cedo no batente. No passado (recente) havia o seu Manoel, velho deficiente físico que ficava até tarde da noite na calçada. Havia a dona Bita, a dona Nura... Quem passava, cumprimenta-va-os. Crentes, católicos, testemunhas de Jeová. Seus famigerados personagens noturnos. Morreram. E deixaram-no sozinho nas melancólicas noites de domingo. Hoje só existe ele. Ele e as coisas inanimadas. É órfão de tudo, um deserdado. Está sem saco para ler, falta-lhe paciência. Na tevê, nada que preste. Nas maiores redes não passa filme erótico, para não violentar a moral e os bons costumes. Mas violentar o corpo, pode: o sangue escorre nos filmes liberados em todos os horários, para todas as idades. É proibido explicitar o pecado. Já induzir os fracos seres humanos à violência, ah, isso pode. Pois em cinema pornô já foi. Mas nunca pôs seus pés numa faculdade, num museu. Para que o conhecimento acadêmico, elitizado, quando tudo que precisa é saber lidar com o computador? Mas carece, ao menos, matricular-se urgentemente num curso de inglês, senão como é que vai pedir um sanduíche na lanchonete do shopping? Agora não pertence a um só país. É do mundo, um cidadão cosmopolita, globalizado, tudo muito chique, compreende? Embora vivendo o tempo todo numa única cidade, sem ninguém de outra tomar conhe-cimento da sua existência. E seu vergonhoso currículo se resume a um diploma de curso secundário. É um cara constrangido diante dessa nova era. Os domingos são tristes, desertos, silenciosos. Ressaca das noites profanas de sexta e sábado? Domingo tem a ver com missa. É o semblante da religiosidade. Domingo é a ressurreição. Dia de se livrar dos atos pecaminosos – para cometê-los novamente, e nova-mente em excesso, ao longo da semana. Seis dias de pecado, um de flagelo. Os blues amargos da Billie são perfeitos para as noites de domingo. Sua voz é um convite ao abismo. Renasce em si as esperanças de um sono atemporal. Amou para lhe dar uma chance de se amar. Artifício? Subterfúgio? Freud explica. Ele não se ama. Necessita que lhe digam se é digno do seu próprio amor. Pode? A que pon-to chegou! Mas daí perceberam e não o amaram. Então continua não se amando. Vida afora, vida dentro. Não acha que tem obrigação nenhuma de amar a Deus – ou tem? Nem chama por Ele nos momentos difíceis. Para ser bem franco, raramente pensa a respeito. Para que ficar perdendo tempo em reflexões acerca d’O Ser Subjetivo? Teve boa formação de caráter, é isso que importa. No mais, carrega sentimentos bons e ruins, como qualquer cristão. Tem que acordar cedo, por isso precisa dormir! Precisa, precisa! Precisa de força, disposição, a monotonia o aguarda ansiosa! A fim de devorá-lo monstruosamente! Maldito monstro! Ai, o asfalto lhe é atraente! Um corpo que cai. Uma coisa Hitchcock. O capitalismo o transformou num vegetal. Ou num bonequinho mecanizado? O que o move é a cólera, o que o defende é o cinismo. E o que mais o consome também. É um tanque de veneno atômico. Tomou sopa de feijão quente no jantar, cardápio dominical. Não tem mais Dia das Mães. Nunca teve Dia dos Pais. Existem pessoas que morrem, embora permanecendo vivas, sabiam? Billie Holiday nesse momento canta Loverman. É discípulo de Darwin. Se Deus existe, é digno de sua ira. Ganhou o estigma de coisa-ruim. Mas não se acha essa praga que dizem que é. Sim-plesmente gosta de quem gosta dele. Puro reflexo. Amanhece sorrindo, o domingo, e a praia é roubada deles pelos farofeiros barulhen-tos e sem nenhuma educação, que chegam em ônibus apinhados. À tarde, o silêncio. Ossos de galinha, garrafas quebradas, restos de farofa. À noite, essa solidão. Nada mais triste do que uma noite de domingo sozinho, depois de um final de semana procurando companhia de bar em bar, procurando agulha num palheiro. E nada. Nada. Ninguém. Seus olhos são generosos: mostram-lhe a transparência do mundo com nitidez. Mas a mente, impiedosa... lhe dá esse sabor amargo. Por isso a intolerância. Por isso não dá crédito aos clones. Se o ser humano é uma mentira, torna-se difícil lidar com ele, quando se elege a verdade como doutrina. A mentira é igual a um objeto escorregadio: você tenta segurá-lo e ele escapole das suas mãos. É um labirinto que você percorre e se perde lá dentro, não retorna jamais ao começo. Engarrafamento mental, eis o problema. Pensa em fazer ou dizer muita coisa ao mesmo tempo e acaba não fazendo nada. Não consegue se organizar, realizar as coisas por etapa. Mas, quais coisas são prioritárias na sua vida? Hum. E ele sabe lá! Padece de intran-quilidade, de falta de concentração. Nada surge à toa. Nada é acidental, coincidência, mero acaso. Coisas são conse-quências de outras coisas. Tudo é matemático. Um orgasmo, por exemplo, é resultado de um desejo. Ele venerou porque pensou que os olhos alheios seriam um espelho no qual ele se refletiria. E jamais vislumbrou qualquer detalhe de sua imagem ali, noutros olhos. Jamais. E aí desistiu. Amar cegamente alguém é falta de autossuficiência? Amor ao próximo é pura ilusão? No fundo desejava mesmo era agarrar-se em algo que lhe trouxesse conforto interior, prazer e felicidade. O ser humano é egoísta. Deixa-o ainda mais triste a certeza de nunca poder participar de quadro tipo assim Essa é a sua vida. Porque não se lembra de fatos marcantes que assinalem determinadas datas. Porque não teve amigos na infância, não possui álbum de família. Sempre teve uma vida à margem, e o ocaso dela certamente não será deslumbrante. O vizinho, que é crente, um fanático, chegou do culto há algum tempo, e inicia seu festival de escarros. Cachorro catarrento. Tapa os ouvidos com os dedos. Toda madrugada a sessão se repete. Que vontade de gritar um palavrão, mandá-lo numa nave espacial para os quintos dos infernos. Eles, os religiosos, acham que é suficiente ter fé, pôr a Bíblia debaixo do braço e rezar numa igreja. Pronto, seus lugares estão garantidos lá no céu. Eles devem pensar assim: eu creio, logo tô salvo, tô protegido de todos os males. Não importa se o outro passa fome na rua. Não é importante fazer nada pelo próximo. Importa é que ele está bem, numa bela casa, com um bom carro, mesa farta. E por isso agradece a Deus de vez em quando. Que maravilha é ser religioso! Todos os dias roga ao Rei das Trevas: lágrimas de sangue para quem um dia o fez derramar uma lágrima injustamente. Pensa que perdoa, que tem pena? Não. Quem tem pena é galinha. Para os amigos, o paraíso; para os inimigos, o purgatório. Queria chorar, para ver se dissolvia tamanha angústia. Mas está seco, não consegue mais arrancar uma gota d’água de dentro de si. Um ser fechado, ele é. Uma estrela muda de lugar, velozmente. Deve fazer um pedido? Fama, dinheiro e sexo. Não se resume a isso a busca existencial do ser humano, afinal? Por onde andará Lourdes Maria? Fazendo o quê com quem? Saudades do corpo de Lourdes Maria. Um corpo faz falta. É que nem pão. O pai dorme, ronca feito porco. Chegou já passava das dez. Saiu de um beco da praia. Ele tem uma amante. A mãe sabe, mas finge que não. Prefere orar. Entrega tudo a Deus. Ele é o encarregado de solucionar tudo na vida dela. Diz por aí que não faz nada que é para os filhos não se revoltarem contra a figura paterna. Mentira. Na verdade teme perder o marido, o título honorífico de Mulher Casada, ser punida pela Igreja. Falando em Igreja, para onde vão os dízimos que os fiéis dão a seus pastores? Tem essa curiosidade. Jane entra no beco acompanhada do seu Tarzã. Vão se comer na praia. O motel deles é um velho barco abandonado. Muita gente já viu. Sob a terra, tem-se água. Então o ventre da terra é só água? Água e raízes. A terra é uma mulher grávida. Já adentrando a casa dos enta: quarenta, cinquenta... Preocupação. Aflição. As rugas vão se acentuando, tornando-se visíveis, fios de cabelo desaparecem, e nem uma casa para morar. Data natalícia para todo mundo é dia de festa. Ele nem faz nem autoriza que façam para ele. Festinha surpresa, com bolinho e uma vela ridícula ao centro é o fim! Por que deve comemorar quase quarenta anos de derrota? Às vezes sente vontade de parar de nadar contra a correnteza. Ele é assim: o mundo inteiro contra ele, ele sozinho contra o mundo inteiro. Só que um dia todo mundo cansa, morre afogado. Quando antes não decide ir na onda, deixar-se conduzir. Não, isso não: pre-fere o sofrimento eterno. Se assim é, que assim seja – não é como conclui a oração? Ou não é oração? Sabe lá! Certa noite escreveu um poema intitulado De um filho. Decorou. Diz o seguinte: Quando for Natal / Vomitarei sobre a ceia / Numa manifestação de repúdio familiar / No Dia dos Pais / Vou fazer michê / Puxar fumo / Me vender por aí / A fim de comprar teu presente / E farei uma mensagem / Com sangue de meus pulsos cortados / Te cobrando os dias que me foram furtados / No teu aniversário / Vou encher a cara / Pra depois encher com a tua / E num dia qualquer / Me enforcarei na tua presença / Depois de pôr veneno no teu café. Nunca vai esquecer a noite em que escreveu essas frases, domado pela cólera, pelo irracional. Copa do Mundo de 94. Brasil tetracampeão. Todo mundo vibrando nas ruas e ele chorando de tristeza. Será obrigação sua passar por cima de tudo, esquecer? Nem a imensa lua que prateia as palhas dos coqueiros o ilumina. É obscuro, obstru-ído, obsoleto. Por isso todo seu ser se desabrocha no período noturno. Durante o dia é um corpo vulgar, uma mente corrompida. O bicho que mora nele só se solta à noite. É quando vira Drácula. A maré está cheia. Ouve o lamento das ondas. O mar é um deus, um deus em estado líquido. Está se aproximando o dia em que o homem matará todos os seus deuses. Já plantou uma árvore, já fez um filho, falta o livro. Está residindo com a mãe, com pai postiço. Nem um bocejo. Cadê seu sono? Pessoas fazem sexo e gritam tendo orgasmos, cachorros latem, gatos correm sobre os telhados, tirando telhas do lugar, quebrando outras. Quando chove, aparece pingadeira por tudo que é canto. Amanhã bota umas comidinhas com recheio de veneno para eles se deliciarem – se sobreviver a esta madrugada. Peca no banheiro. Depois toma banho. Limpo outra vez. Todos o desejam limpo. A gente vai amadurecendo – ou apodrecendo? – e parece que os sentimentos vão fi-cando fúteis. Se diluem com certa rapidez. Fica-se anestesiado ou sem-vergonha? Tudo que é sólido desmancha-se no ar – viu um livro com esse título, tempos atrás, exposto numa livraria. Não comprou, não leu. A mãe não entende porque colou um pôster do Che Guevara na parede, acima da cama. O irmão diz: Foto de outro macho! Pensam que ele é gay, que é apaixonado pelo Guevara? Ô, gentalha ignorante! Pendurar foto – perdão: desenho do Cristo, pode. Amar a Cristo, pode. Mas Ele também não foi um homem? Como é difícil compreender a humani-dade! Só entendem de novela de televisão. Por isso os donos das maiores redes governam a mente deles e o país... Olha mais uma vez para a cama de paralelepípedos. Billie Holiday interpreta Fine & Mellow. Ele abre os braços para voar. E voa. Voa de regresso ao ninho. Que eu seja internado! / Ensandecido por um amor inventado! / Que tenha eu uma explosão! / De cólera de paixão! / Que eu sangre apedrejado! / Gritando meu amor avessa-do! / Que eu caia atropelado! / Por palavras de um amor dilacerado! / Que seja eu baleado! / Por um beijo mandado! / Que me fulmine o coração! / Por amar à exaustão! / Que eu cometa suicídio! / Fugindo de um amor correspondido! / Se eu morrer de overdose, que seja de sexo! de ecstasy! / Só não quero morrer, suplantado por uma virose! Outro poema seu. De amor, loucura e solidão. Era passional, louco e solitário. Hoje é domingo. Dia Mundial do Suicídio.

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