sábado, 12 de janeiro de 2013

ASSOMBRAÇÃO (conto inédito)

Hoje eu entro aí, quero nem saber, o garoto prometeu a si mesmo, um pouco afastado do circo, protegido por um coqueiro e pela penumbra, observando o movimento das pessoas com olhos atentos. Vou comprar o ingresso e vou entrar. Parecia decidido, afinal, era o último espetáculo na cidade e ele não queria perder. Tinha o casamento dos palhaços, todos os seus amiguinhos iriam. O Paulinho já foi duas vezes e hoje vai de novo. Onde arranjava tanto dinheiro? Já comprara ingresso que ele tinha visto, ninguém lhe deu. O Dani acabou de entrar. Amanhã estava tudinho comentando na escola, aquela semana lá ninguém tivera outro assunto. E ele de fora, sem ter nada para dizer, morrendo de inveja e de raiva. Ainda não tinha avistado ninguém da sua família entrar. Achava que não viriam. Se não tinham vindo até agora... Mas, e se algum deles chegasse quando ele estivesse lá dentro? Não, não, ninguém viria não. Estavam todos “lá”. E se algum dedo-duro o visse e fosse contar para sua mãe? Levaria uma pisa danada. Mas entraria, desse no que desse. Ia esperar só mais um pouquinho, até a hora de começar, para que não reparassem na sua chegada. Deu um tempo e dirigiu-se cabisbaixo e com passos inseguros à bilheteria, num instante em que não havia fila. Não queria ser notado. Mas percebeu, pelo canto dos olhos, a imediata mudança de atitude em uma turma de crianças e adolescentes sentados na grama a uns nove metros da porta de entrada e saída. Conversavam e riam alto, quando de repente calaram-se ao enxergá-lo, quase todos a um só tempo. Fitaram-no sem nenhum disfarce, cutucaram-se, cochicharam entre si, e o acompanharam com o olhar até ele desaparecer sob a lona suja, velha e rasgada. Eles sabem quem sou eu, conhecem minha mãe, mas não assim de falar. Só conhecem de vista. Naquela cidade todo mundo se conhecia, pelo menos assim, de vista. Entregou o ingresso – comprado com dinheiro que havia tirado escondido das economias da mãe – ao porteiro e adentrou o circo. O comportamento dos espectadores não foi diferente. Seus próprios amiguinhos lhe lançavam olhares certeiros, estupefatos. Buscavam seu olhar (trêmulo e indefeso) para cravarem suas munições tirânicas. Mas ele não se deixava alvejar, apesar de decifrar bem a expressão dos outros, que lhe era nova (e assustadora): como se ele fosse algo podre saído do lixo, fedesse, num ambiente limpo e puro. Demonstravam claramente que condenavam sua aparição ali. E se o garoto, num ímpeto de curiosidade mais do que coragem, espiava-os disfarçadamente, viravam a cabeça, preterindo-o. Tô começando a ficar com medo. Melhor não ter vindo. Depois, uma enxurrada de palavras sussurradas, incompreensíveis. Estão falando de mim. Todo mundo. As mães murmuravam no ouvido dos filhos, que, em obediência, repudiavam-no. Todos lhe negaram um aceno. Sentindo o clima, ele cuidou de sentar-se rapidamente no meio da arquibancada, longe de outros garotos, entre adultos de ruas distantes, que pouco se importavam com ele. Aí, pela primeira vez, ergueu a cabeça e deu uma olhada geral, lenta. Nenhum tio, nenhuma tia, nenhum primo. Ainda bem. Centralizou sua atenção na moça que se requebrava no palco, esforçando-se para cantar uma música brega de sucesso, acompanhada pela banda do próprio circo. Mas tudo nela contribuía para uma apresentação totalmente sem graça: o corpo (fora de forma), a voz (fanhosa), o biquíni (que um dia fora) dourado. Transcorridos alguns minutos, ele até exibiu um certo contentamento – averiguado pelos punidores plantonistas –, o que era bastante natural nas crianças presentes. Mas havia algo de desigual naquele ali: estava inquieto, cismado. Conturbados sentimentos se exteriorizavam. A atração que lhe interessava verdadeiramente só apareceu no finalzinho do show. Quando a “noiva” e o “noivo” surgiram em cena, a garotada aplaudiu de pé. Exceto o menino em foco. Enquanto os demais vibravam, reagindo às pilhérias dos palhaços, ele, tímido, até ousou esboçar um sorriso – esquecendo de que felicidade era sentimento ilegalizado pelo menos no momento –, meio mofino, sem nenhum vestígio da naturalidade infantil. Porém, de súbito, recordava-se de alguma coisa e sustava o riso. Então se policiava, espreitava todos os lados, com cara de quem procurava um bicho pavoroso. Um profundo desconforto interior o impedia de se entreter feito os outros. Como se alguém o vigiasse o tempo todo. Aos poucos, entretanto, foi relaxando, deixando-se envolver. E sorriu. Gargalhou. Gritou. Aplaudiu. Era pr’eu ter vindo ontem, ou anteontem, mas eu pedi dinheiro a ele, juro que pedi, pedi tanto tanto, e ele não deu. Assim, tive que vir hoje. Não tenho culpa. Simultaneamente a tal pensamento, emitiu uma estridente gargalhada, meio que histérica, diabólica, causando susto nele próprio, em razão da força quase maligna da reação inusitada. E como das vezes anteriores, parou abruptamente, tornando a passear com a vista o seu redor. Afinal, o que estava acontecendo no seu interior? Era como se estivesse se transformando em um ser assombroso. Começou a temer a si mesmo. Resolveu fazer um teste: repetiu a gargalhada. Sem nenhuma vontade, nenhum gosto; com uma dose de ira, num momento em que quase ninguém sorria. Como se quisesse captar alguma coisa. A gargalhada estrondeou dentro do circo, e principalmente dentro da sua cabeça. Como se tivesse sido dada por um morto-vivo dum filme de terror. E o eco se convertido numa lâmina e perfurasse seu cérebro. A imagem sem visibilidade porém perceptível ameaçava e zombava dele. Arrepiou-se todo. E mais uma vez buscou a coisa ameaçadora – o objeto não-identificado – sem avistar nada de anormal. Mas o que procurava exatamente? O pior era que ele não fazia ideia. Que forma teria o ser ou a coisa que o rondava perigosamente? O desespero começou a tomar conta de si. Em seguida foi atacado por uma sensação ainda mais amedrontadora, mais esquisita: uma imensa boca virulenta iria deglutir o circo. Como nos filmes catastróficos. Iria engolir todo mundo. Seus olhinhos mexiam-se incessantemente, de tão nervosos. Passou a desconfiar de que se tratava de castigo dos céus. Castigo divino. Deus tinha enviado um emissário àquele lugar para puni-lo. O emissário invisível escondera-se em alguma parte, e agora o espiava bem de perto. Podia sentir sua presença. Vou ser castigado, minha Nossa Senhora? Tanta falta de sentimento! Seria admoestado, sim, e rigorosamente, por tamanha audácia. Não era humano, não era filho de Deus? Fora batizado, fizera a primeira comunhão, não era para estar ali agora. Não naquele dia. De jeito nenhum. Taí o seu medo de liberar, de exibir euforia: temia ser condenado por Deus. Tinha pecado, e todo pecado é crime, e todo crime é submetido a uma pena. O menino carregava na memória as palavras da mãe, da professora, do padre. Conservava uma imagem muito feia de Deus. Embutida por outrem, pois ainda era bem pequeno para decodificar coisas complexas. Daí entrou num processo de alienação. Começou a suplicar perdão silenciosa e desesperadamente, rezando várias preces ao mesmo tempo, valendo-se de todos os nomes bíblicos de que tinha conhecimento. Deus o trucidava, e ele ainda O implorava remissão. De repente ouviu uma voz familiar às suas costas: – O que é que esse menino tá fazendo aqui? Sentiu um frio na espinha. O coração acelerou, as mãos gelaram. Nem precisou se voltar para constatar que falavam dele. Permaneceu na mesma posição, com o mesmo semblante, inerte, fingindo não ter escutado ou entendido nada, apesar de sentir o olhar duro da mulher penetrando suas costas, queimando sua pele, sua carne. Não conseguiu enxergar mais nada: – O pai dele tá morto em casa... – completou a senhora, em conversa com o marido. Viu subitamente aquela mulher, freguesa do pai, virar um monstro horroroso. O circo girou. Cobriu o rostinho com as mãos trêmulas e muito brancas. E, na escuridão da mente, vislumbrou: o cadáver do pai, deitado num caixão enfeitado de flores, como se dormisse. (Imagens em preto e branco, perenes na memória.) Quanto asco sentira! Sequer havia jantado. As flores murchas, afeadas – jamais que tornaria a pegar numa, jurara consigo mesmo. Não tenho culpa se o Senhor decidiu levá-lo hoje, queria ter vindo nos outros dias e nem ele nem a mãe me deu moeda, tá vendo? tá vendo? depois eu que sou o culpado? não! sou não! não tenho culpa, eu não tenho culpa, não tenho! O medo era a culpa. A culpa era Deus. Tinha medo de Deus porque se sentia culpado. As lágrimas brotaram. Dor, tristeza, abandono. O enterro do pai. Amanhã. Retirou as mãozinhas da cara, levantou a cabeça, abriu os olhos, moveu-os de novo em volta, vagarosamente, para ter a certeza de que se achava realmente dentro de um circo lotado de gente, onde dois homens pintados gracejavam, uma plateia se divertia. Não existia monstro nenhum. Mas que havia algo de aspecto medonho no ar, ah, isso havia. Tem alguma coisa aqui, eu sei. A sensação era quase palpável. Começou a chorar baixinho. Depois, soluçou. Pior era que a plateia continuava a gargalhar, indiferente à sua aflição. Parem de rir, seus filhos do cão! eu tô chorando, eu tô sofrendo, será que ninguém vê? por que eu também não tenho o direito de estar me divertindo que nem todo mundo? Então desceu da arquibancada e encaminhou-se até os palhaços, chorando feito um desvairado. Ao vê-lo, os artistas interromperam a apresentação para observá-lo. Em resposta, o público fez total silêncio. Muitos fecharam a cara. – O que tu tem, moleque? – perguntou a “noiva”, inclinando-se um pouco para a frente. – Alguém te bateu? – indagou o “noivo”. Ele respondeu que não, balançando a cabeça. E disse: – Tô com medo. Tô com muito medo. – A cabeça baixa, esfregando os olhos. – Medo? – espantou-se o “noivo”. – Medo do quê? – Não sei direito... Parece... que tem um bicho me vigiando aqui... o tempo inteiro... Esperando a hora d’eu sair... pra me pegar lá fora... A “noiva” então se dirigiu aos espectadores: – Alguém aí viu um bicho? A resposta veio em coro: – Nããããão! Em seguida, uma voz solitária, anônima: – Vai pra casa, excomungado! Uns repetiram o adjetivo, outros gritaram, vaiaram. Ignorando a vida do garoto, e o que se passava entre ele e a plateia, os palhaços prosseguiram. O “noivo” disse: – Tá vendo? Não existe nenhum bicho aqui. – Existe, sim – teimava o menino. – Você viu? – indagou o “noivo”. – Se viu, mostre-o pra gente. Cadê-lo? O garoto, hesitante, confuso: – Tá em todo lugar... Pra onde eu olho... eu vejo ele. Até quando fecho os olhos. – Até quando fecha os olhos?! – interrogou a “noiva”. – Ééé... Mas eu não vejo. Só sei que ele tá ali. Ele é invisível. – Respeitável público! – falou o “noivo”, em voz alta. – O bicho é invisível! O menino cessava de chorar. E começava a sentir raiva dos artistas, que não o levavam a sério. De súbito, ele perguntou, suspendendo a cabeça pela primeira vez: – O que é Deus? – Breve pausa. – Onde Ele fica? Os palhaços fizeram uma expressão curiosa sob a máscara, perplexos face a inusitada indagação – a troca do pronome (que, em vez de quem), a ênfase com que foi dito. Demorou um pouco para o “noivo” responder, em alto e bom tom, para que todos escutassem, como se fizesse parte da sua a(re)presentação: – Deus, meu filho? – Levantou o braço direito para o alto, o dedo indicador em vertical. E completou, fixo no menino, os olhos arregalados, o corpo meio inclinado, com uma falsa carga dramática: – É um monstro bonito e traiçoeiro que dorme em berço esplêndido acima da cabeça de todos nós. As crianças repetiram as risadas de desde o início, enquanto que os adultos não acharam graça nenhuma. Com isso a plateia ganhou uma divisão insólita. Os adultos olharam para as crianças como se todas tivessem se transformado em pequenos diabos. O menino aí se virou para o público, sem prestar atenção nas caras emburradas que restavam. Também sorriu, a pele alumiada por restos de lágrimas. E respirou fundo, sentindo-se aliviado.

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