sábado, 12 de janeiro de 2013

ASSOMBRAÇÃO (conto inédito)

Hoje eu entro aí, quero nem saber, o garoto prometeu a si mesmo, um pouco afastado do circo, protegido por um coqueiro e pela penumbra, observando o movimento das pessoas com olhos atentos. Vou comprar o ingresso e vou entrar. Parecia decidido, afinal, era o último espetáculo na cidade e ele não queria perder. Tinha o casamento dos palhaços, todos os seus amiguinhos iriam. O Paulinho já foi duas vezes e hoje vai de novo. Onde arranjava tanto dinheiro? Já comprara ingresso que ele tinha visto, ninguém lhe deu. O Dani acabou de entrar. Amanhã estava tudinho comentando na escola, aquela semana lá ninguém tivera outro assunto. E ele de fora, sem ter nada para dizer, morrendo de inveja e de raiva. Ainda não tinha avistado ninguém da sua família entrar. Achava que não viriam. Se não tinham vindo até agora... Mas, e se algum deles chegasse quando ele estivesse lá dentro? Não, não, ninguém viria não. Estavam todos “lá”. E se algum dedo-duro o visse e fosse contar para sua mãe? Levaria uma pisa danada. Mas entraria, desse no que desse. Ia esperar só mais um pouquinho, até a hora de começar, para que não reparassem na sua chegada. Deu um tempo e dirigiu-se cabisbaixo e com passos inseguros à bilheteria, num instante em que não havia fila. Não queria ser notado. Mas percebeu, pelo canto dos olhos, a imediata mudança de atitude em uma turma de crianças e adolescentes sentados na grama a uns nove metros da porta de entrada e saída. Conversavam e riam alto, quando de repente calaram-se ao enxergá-lo, quase todos a um só tempo. Fitaram-no sem nenhum disfarce, cutucaram-se, cochicharam entre si, e o acompanharam com o olhar até ele desaparecer sob a lona suja, velha e rasgada. Eles sabem quem sou eu, conhecem minha mãe, mas não assim de falar. Só conhecem de vista. Naquela cidade todo mundo se conhecia, pelo menos assim, de vista. Entregou o ingresso – comprado com dinheiro que havia tirado escondido das economias da mãe – ao porteiro e adentrou o circo. O comportamento dos espectadores não foi diferente. Seus próprios amiguinhos lhe lançavam olhares certeiros, estupefatos. Buscavam seu olhar (trêmulo e indefeso) para cravarem suas munições tirânicas. Mas ele não se deixava alvejar, apesar de decifrar bem a expressão dos outros, que lhe era nova (e assustadora): como se ele fosse algo podre saído do lixo, fedesse, num ambiente limpo e puro. Demonstravam claramente que condenavam sua aparição ali. E se o garoto, num ímpeto de curiosidade mais do que coragem, espiava-os disfarçadamente, viravam a cabeça, preterindo-o. Tô começando a ficar com medo. Melhor não ter vindo. Depois, uma enxurrada de palavras sussurradas, incompreensíveis. Estão falando de mim. Todo mundo. As mães murmuravam no ouvido dos filhos, que, em obediência, repudiavam-no. Todos lhe negaram um aceno. Sentindo o clima, ele cuidou de sentar-se rapidamente no meio da arquibancada, longe de outros garotos, entre adultos de ruas distantes, que pouco se importavam com ele. Aí, pela primeira vez, ergueu a cabeça e deu uma olhada geral, lenta. Nenhum tio, nenhuma tia, nenhum primo. Ainda bem. Centralizou sua atenção na moça que se requebrava no palco, esforçando-se para cantar uma música brega de sucesso, acompanhada pela banda do próprio circo. Mas tudo nela contribuía para uma apresentação totalmente sem graça: o corpo (fora de forma), a voz (fanhosa), o biquíni (que um dia fora) dourado. Transcorridos alguns minutos, ele até exibiu um certo contentamento – averiguado pelos punidores plantonistas –, o que era bastante natural nas crianças presentes. Mas havia algo de desigual naquele ali: estava inquieto, cismado. Conturbados sentimentos se exteriorizavam. A atração que lhe interessava verdadeiramente só apareceu no finalzinho do show. Quando a “noiva” e o “noivo” surgiram em cena, a garotada aplaudiu de pé. Exceto o menino em foco. Enquanto os demais vibravam, reagindo às pilhérias dos palhaços, ele, tímido, até ousou esboçar um sorriso – esquecendo de que felicidade era sentimento ilegalizado pelo menos no momento –, meio mofino, sem nenhum vestígio da naturalidade infantil. Porém, de súbito, recordava-se de alguma coisa e sustava o riso. Então se policiava, espreitava todos os lados, com cara de quem procurava um bicho pavoroso. Um profundo desconforto interior o impedia de se entreter feito os outros. Como se alguém o vigiasse o tempo todo. Aos poucos, entretanto, foi relaxando, deixando-se envolver. E sorriu. Gargalhou. Gritou. Aplaudiu. Era pr’eu ter vindo ontem, ou anteontem, mas eu pedi dinheiro a ele, juro que pedi, pedi tanto tanto, e ele não deu. Assim, tive que vir hoje. Não tenho culpa. Simultaneamente a tal pensamento, emitiu uma estridente gargalhada, meio que histérica, diabólica, causando susto nele próprio, em razão da força quase maligna da reação inusitada. E como das vezes anteriores, parou abruptamente, tornando a passear com a vista o seu redor. Afinal, o que estava acontecendo no seu interior? Era como se estivesse se transformando em um ser assombroso. Começou a temer a si mesmo. Resolveu fazer um teste: repetiu a gargalhada. Sem nenhuma vontade, nenhum gosto; com uma dose de ira, num momento em que quase ninguém sorria. Como se quisesse captar alguma coisa. A gargalhada estrondeou dentro do circo, e principalmente dentro da sua cabeça. Como se tivesse sido dada por um morto-vivo dum filme de terror. E o eco se convertido numa lâmina e perfurasse seu cérebro. A imagem sem visibilidade porém perceptível ameaçava e zombava dele. Arrepiou-se todo. E mais uma vez buscou a coisa ameaçadora – o objeto não-identificado – sem avistar nada de anormal. Mas o que procurava exatamente? O pior era que ele não fazia ideia. Que forma teria o ser ou a coisa que o rondava perigosamente? O desespero começou a tomar conta de si. Em seguida foi atacado por uma sensação ainda mais amedrontadora, mais esquisita: uma imensa boca virulenta iria deglutir o circo. Como nos filmes catastróficos. Iria engolir todo mundo. Seus olhinhos mexiam-se incessantemente, de tão nervosos. Passou a desconfiar de que se tratava de castigo dos céus. Castigo divino. Deus tinha enviado um emissário àquele lugar para puni-lo. O emissário invisível escondera-se em alguma parte, e agora o espiava bem de perto. Podia sentir sua presença. Vou ser castigado, minha Nossa Senhora? Tanta falta de sentimento! Seria admoestado, sim, e rigorosamente, por tamanha audácia. Não era humano, não era filho de Deus? Fora batizado, fizera a primeira comunhão, não era para estar ali agora. Não naquele dia. De jeito nenhum. Taí o seu medo de liberar, de exibir euforia: temia ser condenado por Deus. Tinha pecado, e todo pecado é crime, e todo crime é submetido a uma pena. O menino carregava na memória as palavras da mãe, da professora, do padre. Conservava uma imagem muito feia de Deus. Embutida por outrem, pois ainda era bem pequeno para decodificar coisas complexas. Daí entrou num processo de alienação. Começou a suplicar perdão silenciosa e desesperadamente, rezando várias preces ao mesmo tempo, valendo-se de todos os nomes bíblicos de que tinha conhecimento. Deus o trucidava, e ele ainda O implorava remissão. De repente ouviu uma voz familiar às suas costas: – O que é que esse menino tá fazendo aqui? Sentiu um frio na espinha. O coração acelerou, as mãos gelaram. Nem precisou se voltar para constatar que falavam dele. Permaneceu na mesma posição, com o mesmo semblante, inerte, fingindo não ter escutado ou entendido nada, apesar de sentir o olhar duro da mulher penetrando suas costas, queimando sua pele, sua carne. Não conseguiu enxergar mais nada: – O pai dele tá morto em casa... – completou a senhora, em conversa com o marido. Viu subitamente aquela mulher, freguesa do pai, virar um monstro horroroso. O circo girou. Cobriu o rostinho com as mãos trêmulas e muito brancas. E, na escuridão da mente, vislumbrou: o cadáver do pai, deitado num caixão enfeitado de flores, como se dormisse. (Imagens em preto e branco, perenes na memória.) Quanto asco sentira! Sequer havia jantado. As flores murchas, afeadas – jamais que tornaria a pegar numa, jurara consigo mesmo. Não tenho culpa se o Senhor decidiu levá-lo hoje, queria ter vindo nos outros dias e nem ele nem a mãe me deu moeda, tá vendo? tá vendo? depois eu que sou o culpado? não! sou não! não tenho culpa, eu não tenho culpa, não tenho! O medo era a culpa. A culpa era Deus. Tinha medo de Deus porque se sentia culpado. As lágrimas brotaram. Dor, tristeza, abandono. O enterro do pai. Amanhã. Retirou as mãozinhas da cara, levantou a cabeça, abriu os olhos, moveu-os de novo em volta, vagarosamente, para ter a certeza de que se achava realmente dentro de um circo lotado de gente, onde dois homens pintados gracejavam, uma plateia se divertia. Não existia monstro nenhum. Mas que havia algo de aspecto medonho no ar, ah, isso havia. Tem alguma coisa aqui, eu sei. A sensação era quase palpável. Começou a chorar baixinho. Depois, soluçou. Pior era que a plateia continuava a gargalhar, indiferente à sua aflição. Parem de rir, seus filhos do cão! eu tô chorando, eu tô sofrendo, será que ninguém vê? por que eu também não tenho o direito de estar me divertindo que nem todo mundo? Então desceu da arquibancada e encaminhou-se até os palhaços, chorando feito um desvairado. Ao vê-lo, os artistas interromperam a apresentação para observá-lo. Em resposta, o público fez total silêncio. Muitos fecharam a cara. – O que tu tem, moleque? – perguntou a “noiva”, inclinando-se um pouco para a frente. – Alguém te bateu? – indagou o “noivo”. Ele respondeu que não, balançando a cabeça. E disse: – Tô com medo. Tô com muito medo. – A cabeça baixa, esfregando os olhos. – Medo? – espantou-se o “noivo”. – Medo do quê? – Não sei direito... Parece... que tem um bicho me vigiando aqui... o tempo inteiro... Esperando a hora d’eu sair... pra me pegar lá fora... A “noiva” então se dirigiu aos espectadores: – Alguém aí viu um bicho? A resposta veio em coro: – Nããããão! Em seguida, uma voz solitária, anônima: – Vai pra casa, excomungado! Uns repetiram o adjetivo, outros gritaram, vaiaram. Ignorando a vida do garoto, e o que se passava entre ele e a plateia, os palhaços prosseguiram. O “noivo” disse: – Tá vendo? Não existe nenhum bicho aqui. – Existe, sim – teimava o menino. – Você viu? – indagou o “noivo”. – Se viu, mostre-o pra gente. Cadê-lo? O garoto, hesitante, confuso: – Tá em todo lugar... Pra onde eu olho... eu vejo ele. Até quando fecho os olhos. – Até quando fecha os olhos?! – interrogou a “noiva”. – Ééé... Mas eu não vejo. Só sei que ele tá ali. Ele é invisível. – Respeitável público! – falou o “noivo”, em voz alta. – O bicho é invisível! O menino cessava de chorar. E começava a sentir raiva dos artistas, que não o levavam a sério. De súbito, ele perguntou, suspendendo a cabeça pela primeira vez: – O que é Deus? – Breve pausa. – Onde Ele fica? Os palhaços fizeram uma expressão curiosa sob a máscara, perplexos face a inusitada indagação – a troca do pronome (que, em vez de quem), a ênfase com que foi dito. Demorou um pouco para o “noivo” responder, em alto e bom tom, para que todos escutassem, como se fizesse parte da sua a(re)presentação: – Deus, meu filho? – Levantou o braço direito para o alto, o dedo indicador em vertical. E completou, fixo no menino, os olhos arregalados, o corpo meio inclinado, com uma falsa carga dramática: – É um monstro bonito e traiçoeiro que dorme em berço esplêndido acima da cabeça de todos nós. As crianças repetiram as risadas de desde o início, enquanto que os adultos não acharam graça nenhuma. Com isso a plateia ganhou uma divisão insólita. Os adultos olharam para as crianças como se todas tivessem se transformado em pequenos diabos. O menino aí se virou para o público, sem prestar atenção nas caras emburradas que restavam. Também sorriu, a pele alumiada por restos de lágrimas. E respirou fundo, sentindo-se aliviado.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

LIBERTAÇÃO (conto inédito)

Amanhã é segunda-feira. Dia Mundial do Desânimo. Dia de atropelar os sentimentos maníaco-depressivos, de se reerguer, espremer os órgãos, tirar deles a vitamina indispensável para encarar de novo o velho dia, a antiga se-mana. Que horror! É isso que o oprime, e eles não entendem. Será que ninguém passa pelo que ele passa, pensa o que ele pensa? Droga! É insuportável viver quando se tem mais per-cepção das coisas do que o normal. Chamam isso de lucidez. Ele classifica de atentado vio-lento ao seu próprio eu. (Pode-se chamá-lo de assassino de si mesmo?) E se ele tenta – como antigamente, hoje não, não é assim tão louco! – expor essa vi-são, digamos, incomum em um grupo, ninguém lhe dá ouvidos. Ignoram e desviam o rumo da conversa. É quando se sente desgraçadamente só. A sensação é de ser um exemplar exclusivo da raça. Um exemplar esquisito. E pre-terido. Essa é apenas uma das várias formas de condenação. De prisão. Enquanto Billie Holiday entoa Do nothing till you hear from me, sua mente jorra pensamentos dispersos, desconexos. Mas ele é assim, jamais se entretém somente numa te-mática, numa ideia, por isso alguns indivíduos se queixam de não ser possível manter um diálogo consigo. Ele, que já sofreu muito por isso, hoje gargalha. Dizem que é muito ansio-so, seu pensamento veleja por diferentes mares ao mesmo tempo. E ninguém o acompanha por esses mares tempestuosos. É que temas longos o cansam. Um livro grosso, por exemplo, lhe dá repulsa. Gosta do entrecortado, do flash. Do freio súbito e eficaz – no momento em que se prepara para avançar o próximo sinal e o perigo atravessa o seu caminho. A traiçoeira morte. É um ser sem nexo. Com o mundo, com os demais seres, com suas próprias ideolo-gias. Porque as trai diariamente. A caminho dos quarenta anos e – solteiro, nem bonito nem feio (dá para o gasto), uma certa inteligência, alguma cultura, fuma um matinho aí de vez em quando, bebe além do socialmente, não reza, não crê em deuses-germinadores-do-mundo. É da Geração X. Já criaram esse grupo no Facebook? Geração X. Confuso e indecifrável. É o x de uma equação que até agora ninguém sequer soube armar, quanto mais solucionar. Um problema sem solução. Uma coisa indefinida. E aí? Como vai ser denominado na História da Psicologia Universal? Já está ficando tarde, quase uma da matina, e ele não tem sono. Indeciso está entre dormir mais uma noite e acordar, ou dormir para sempre, lá embaixo, na cama de concreto que lhe parece, nesse momento, mais aconchegante que a do quarto. Quem o guia é Clarice Lispector, o que o sacode é balada de house music. Regido por álcool, maconha e ecstasy. A mãe ainda não voltou da missa. Deve ter se esquecido do tempo na casa de algu-ma amiga, falando da vida dos outros, não sabem conversar sobre mais nada... Coitado de-le, que sempre se viu cético! Terá salvação? Quando morrer, sua alma vai para o inferno? Talvez nem o diabo o queira. Ninguém o quer! A rua está deserta. Todo mundo precisa dormir cedo, amanhã é dia de pegar cedo no batente. No passado (recente) havia o seu Manoel, velho deficiente físico que ficava até tarde da noite na calçada. Havia a dona Bita, a dona Nura... Quem passava, cumprimenta-va-os. Crentes, católicos, testemunhas de Jeová. Seus famigerados personagens noturnos. Morreram. E deixaram-no sozinho nas melancólicas noites de domingo. Hoje só existe ele. Ele e as coisas inanimadas. É órfão de tudo, um deserdado. Está sem saco para ler, falta-lhe paciência. Na tevê, nada que preste. Nas maiores redes não passa filme erótico, para não violentar a moral e os bons costumes. Mas violentar o corpo, pode: o sangue escorre nos filmes liberados em todos os horários, para todas as idades. É proibido explicitar o pecado. Já induzir os fracos seres humanos à violência, ah, isso pode. Pois em cinema pornô já foi. Mas nunca pôs seus pés numa faculdade, num museu. Para que o conhecimento acadêmico, elitizado, quando tudo que precisa é saber lidar com o computador? Mas carece, ao menos, matricular-se urgentemente num curso de inglês, senão como é que vai pedir um sanduíche na lanchonete do shopping? Agora não pertence a um só país. É do mundo, um cidadão cosmopolita, globalizado, tudo muito chique, compreende? Embora vivendo o tempo todo numa única cidade, sem ninguém de outra tomar conhe-cimento da sua existência. E seu vergonhoso currículo se resume a um diploma de curso secundário. É um cara constrangido diante dessa nova era. Os domingos são tristes, desertos, silenciosos. Ressaca das noites profanas de sexta e sábado? Domingo tem a ver com missa. É o semblante da religiosidade. Domingo é a ressurreição. Dia de se livrar dos atos pecaminosos – para cometê-los novamente, e nova-mente em excesso, ao longo da semana. Seis dias de pecado, um de flagelo. Os blues amargos da Billie são perfeitos para as noites de domingo. Sua voz é um convite ao abismo. Renasce em si as esperanças de um sono atemporal. Amou para lhe dar uma chance de se amar. Artifício? Subterfúgio? Freud explica. Ele não se ama. Necessita que lhe digam se é digno do seu próprio amor. Pode? A que pon-to chegou! Mas daí perceberam e não o amaram. Então continua não se amando. Vida afora, vida dentro. Não acha que tem obrigação nenhuma de amar a Deus – ou tem? Nem chama por Ele nos momentos difíceis. Para ser bem franco, raramente pensa a respeito. Para que ficar perdendo tempo em reflexões acerca d’O Ser Subjetivo? Teve boa formação de caráter, é isso que importa. No mais, carrega sentimentos bons e ruins, como qualquer cristão. Tem que acordar cedo, por isso precisa dormir! Precisa, precisa! Precisa de força, disposição, a monotonia o aguarda ansiosa! A fim de devorá-lo monstruosamente! Maldito monstro! Ai, o asfalto lhe é atraente! Um corpo que cai. Uma coisa Hitchcock. O capitalismo o transformou num vegetal. Ou num bonequinho mecanizado? O que o move é a cólera, o que o defende é o cinismo. E o que mais o consome também. É um tanque de veneno atômico. Tomou sopa de feijão quente no jantar, cardápio dominical. Não tem mais Dia das Mães. Nunca teve Dia dos Pais. Existem pessoas que morrem, embora permanecendo vivas, sabiam? Billie Holiday nesse momento canta Loverman. É discípulo de Darwin. Se Deus existe, é digno de sua ira. Ganhou o estigma de coisa-ruim. Mas não se acha essa praga que dizem que é. Sim-plesmente gosta de quem gosta dele. Puro reflexo. Amanhece sorrindo, o domingo, e a praia é roubada deles pelos farofeiros barulhen-tos e sem nenhuma educação, que chegam em ônibus apinhados. À tarde, o silêncio. Ossos de galinha, garrafas quebradas, restos de farofa. À noite, essa solidão. Nada mais triste do que uma noite de domingo sozinho, depois de um final de semana procurando companhia de bar em bar, procurando agulha num palheiro. E nada. Nada. Ninguém. Seus olhos são generosos: mostram-lhe a transparência do mundo com nitidez. Mas a mente, impiedosa... lhe dá esse sabor amargo. Por isso a intolerância. Por isso não dá crédito aos clones. Se o ser humano é uma mentira, torna-se difícil lidar com ele, quando se elege a verdade como doutrina. A mentira é igual a um objeto escorregadio: você tenta segurá-lo e ele escapole das suas mãos. É um labirinto que você percorre e se perde lá dentro, não retorna jamais ao começo. Engarrafamento mental, eis o problema. Pensa em fazer ou dizer muita coisa ao mesmo tempo e acaba não fazendo nada. Não consegue se organizar, realizar as coisas por etapa. Mas, quais coisas são prioritárias na sua vida? Hum. E ele sabe lá! Padece de intran-quilidade, de falta de concentração. Nada surge à toa. Nada é acidental, coincidência, mero acaso. Coisas são conse-quências de outras coisas. Tudo é matemático. Um orgasmo, por exemplo, é resultado de um desejo. Ele venerou porque pensou que os olhos alheios seriam um espelho no qual ele se refletiria. E jamais vislumbrou qualquer detalhe de sua imagem ali, noutros olhos. Jamais. E aí desistiu. Amar cegamente alguém é falta de autossuficiência? Amor ao próximo é pura ilusão? No fundo desejava mesmo era agarrar-se em algo que lhe trouxesse conforto interior, prazer e felicidade. O ser humano é egoísta. Deixa-o ainda mais triste a certeza de nunca poder participar de quadro tipo assim Essa é a sua vida. Porque não se lembra de fatos marcantes que assinalem determinadas datas. Porque não teve amigos na infância, não possui álbum de família. Sempre teve uma vida à margem, e o ocaso dela certamente não será deslumbrante. O vizinho, que é crente, um fanático, chegou do culto há algum tempo, e inicia seu festival de escarros. Cachorro catarrento. Tapa os ouvidos com os dedos. Toda madrugada a sessão se repete. Que vontade de gritar um palavrão, mandá-lo numa nave espacial para os quintos dos infernos. Eles, os religiosos, acham que é suficiente ter fé, pôr a Bíblia debaixo do braço e rezar numa igreja. Pronto, seus lugares estão garantidos lá no céu. Eles devem pensar assim: eu creio, logo tô salvo, tô protegido de todos os males. Não importa se o outro passa fome na rua. Não é importante fazer nada pelo próximo. Importa é que ele está bem, numa bela casa, com um bom carro, mesa farta. E por isso agradece a Deus de vez em quando. Que maravilha é ser religioso! Todos os dias roga ao Rei das Trevas: lágrimas de sangue para quem um dia o fez derramar uma lágrima injustamente. Pensa que perdoa, que tem pena? Não. Quem tem pena é galinha. Para os amigos, o paraíso; para os inimigos, o purgatório. Queria chorar, para ver se dissolvia tamanha angústia. Mas está seco, não consegue mais arrancar uma gota d’água de dentro de si. Um ser fechado, ele é. Uma estrela muda de lugar, velozmente. Deve fazer um pedido? Fama, dinheiro e sexo. Não se resume a isso a busca existencial do ser humano, afinal? Por onde andará Lourdes Maria? Fazendo o quê com quem? Saudades do corpo de Lourdes Maria. Um corpo faz falta. É que nem pão. O pai dorme, ronca feito porco. Chegou já passava das dez. Saiu de um beco da praia. Ele tem uma amante. A mãe sabe, mas finge que não. Prefere orar. Entrega tudo a Deus. Ele é o encarregado de solucionar tudo na vida dela. Diz por aí que não faz nada que é para os filhos não se revoltarem contra a figura paterna. Mentira. Na verdade teme perder o marido, o título honorífico de Mulher Casada, ser punida pela Igreja. Falando em Igreja, para onde vão os dízimos que os fiéis dão a seus pastores? Tem essa curiosidade. Jane entra no beco acompanhada do seu Tarzã. Vão se comer na praia. O motel deles é um velho barco abandonado. Muita gente já viu. Sob a terra, tem-se água. Então o ventre da terra é só água? Água e raízes. A terra é uma mulher grávida. Já adentrando a casa dos enta: quarenta, cinquenta... Preocupação. Aflição. As rugas vão se acentuando, tornando-se visíveis, fios de cabelo desaparecem, e nem uma casa para morar. Data natalícia para todo mundo é dia de festa. Ele nem faz nem autoriza que façam para ele. Festinha surpresa, com bolinho e uma vela ridícula ao centro é o fim! Por que deve comemorar quase quarenta anos de derrota? Às vezes sente vontade de parar de nadar contra a correnteza. Ele é assim: o mundo inteiro contra ele, ele sozinho contra o mundo inteiro. Só que um dia todo mundo cansa, morre afogado. Quando antes não decide ir na onda, deixar-se conduzir. Não, isso não: pre-fere o sofrimento eterno. Se assim é, que assim seja – não é como conclui a oração? Ou não é oração? Sabe lá! Certa noite escreveu um poema intitulado De um filho. Decorou. Diz o seguinte: Quando for Natal / Vomitarei sobre a ceia / Numa manifestação de repúdio familiar / No Dia dos Pais / Vou fazer michê / Puxar fumo / Me vender por aí / A fim de comprar teu presente / E farei uma mensagem / Com sangue de meus pulsos cortados / Te cobrando os dias que me foram furtados / No teu aniversário / Vou encher a cara / Pra depois encher com a tua / E num dia qualquer / Me enforcarei na tua presença / Depois de pôr veneno no teu café. Nunca vai esquecer a noite em que escreveu essas frases, domado pela cólera, pelo irracional. Copa do Mundo de 94. Brasil tetracampeão. Todo mundo vibrando nas ruas e ele chorando de tristeza. Será obrigação sua passar por cima de tudo, esquecer? Nem a imensa lua que prateia as palhas dos coqueiros o ilumina. É obscuro, obstru-ído, obsoleto. Por isso todo seu ser se desabrocha no período noturno. Durante o dia é um corpo vulgar, uma mente corrompida. O bicho que mora nele só se solta à noite. É quando vira Drácula. A maré está cheia. Ouve o lamento das ondas. O mar é um deus, um deus em estado líquido. Está se aproximando o dia em que o homem matará todos os seus deuses. Já plantou uma árvore, já fez um filho, falta o livro. Está residindo com a mãe, com pai postiço. Nem um bocejo. Cadê seu sono? Pessoas fazem sexo e gritam tendo orgasmos, cachorros latem, gatos correm sobre os telhados, tirando telhas do lugar, quebrando outras. Quando chove, aparece pingadeira por tudo que é canto. Amanhã bota umas comidinhas com recheio de veneno para eles se deliciarem – se sobreviver a esta madrugada. Peca no banheiro. Depois toma banho. Limpo outra vez. Todos o desejam limpo. A gente vai amadurecendo – ou apodrecendo? – e parece que os sentimentos vão fi-cando fúteis. Se diluem com certa rapidez. Fica-se anestesiado ou sem-vergonha? Tudo que é sólido desmancha-se no ar – viu um livro com esse título, tempos atrás, exposto numa livraria. Não comprou, não leu. A mãe não entende porque colou um pôster do Che Guevara na parede, acima da cama. O irmão diz: Foto de outro macho! Pensam que ele é gay, que é apaixonado pelo Guevara? Ô, gentalha ignorante! Pendurar foto – perdão: desenho do Cristo, pode. Amar a Cristo, pode. Mas Ele também não foi um homem? Como é difícil compreender a humani-dade! Só entendem de novela de televisão. Por isso os donos das maiores redes governam a mente deles e o país... Olha mais uma vez para a cama de paralelepípedos. Billie Holiday interpreta Fine & Mellow. Ele abre os braços para voar. E voa. Voa de regresso ao ninho. Que eu seja internado! / Ensandecido por um amor inventado! / Que tenha eu uma explosão! / De cólera de paixão! / Que eu sangre apedrejado! / Gritando meu amor avessa-do! / Que eu caia atropelado! / Por palavras de um amor dilacerado! / Que seja eu baleado! / Por um beijo mandado! / Que me fulmine o coração! / Por amar à exaustão! / Que eu cometa suicídio! / Fugindo de um amor correspondido! / Se eu morrer de overdose, que seja de sexo! de ecstasy! / Só não quero morrer, suplantado por uma virose! Outro poema seu. De amor, loucura e solidão. Era passional, louco e solitário. Hoje é domingo. Dia Mundial do Suicídio.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

CAPA DO ROMANCE O SEXO DE JUDAS

O SEXO DE JUDAS, UMA PUBLICAÇÃO DA EDITORA ESCÂNDALO. www.editoraescandalo.com À VENDA NAS LIVRARIAS DE TODO O PAÍS, E, CLARO, PELA INTERNET.

Palavras de quem leu o romance O SEXO DE JUDAS


'O Sexo de Judas' é uma bem realizada narrativa, que na sua aparente simplicidade enreda em muitos detalhes os fios de uma diversidade de planos significativos. É uma leitura obrigatória que desnuda a hipocrisia de uma estrutura familiar baseada na posse e na aparência, nos trazendo uma reflexão densa e dolorosa sobre os desígnios e mistérios do corpo. É um romance corajoso, luminoso e emocionado com a emoção seguramente medida por uma forma severa. A maneira vibrante como o autor conduz a estória, torna 'O Sexo de Judas' uma surpresa no mínimo perturbadora para os leitores. É impossível atravessar essa aventura e sair ileso sem ser percorrido por uma gama de sentimentos. Ganha o público brasileiro, em boa hora, essa tão bem realizada narrativa de José Valdemar de Oliveira.
(Luís Andrarreis, ator carioca)

sábado, 2 de julho de 2011

Conto de Vapor Barato nos palcos cariocas

Luis Andrarreis, ator teatral do Rio de Janeiro, está fazendo a adaptação do conto E o Homem Fez a Mulher, que está no meu livro de contos, bem recebido pelos resenhistas literários e cultuado pelos leitores, e pretende encená-lo ainda este ano. Vamos aguardar pra ver.

Vapor Barato: teatro em dose dupla?


Bom, numa bienal do livro, aqui em Campos dos Goytacazes, adiquiri o exemplar de "Vapor Barato". Na primeira página já me sufoquei com "Tão sexy Gay" e me peguei desenhando na mente encenações para a mesma, sou ator e diretor de teatro aqui no interior do estado do Rio de Janeiro. Enfim, de qualquer forma gostaria de manter contato pois assumo que tenho em mente uma montagem alucinante. Feliz por estar conhecendo seu blogg e feliz ainda por descobrir mais de perto a autor de uma delícia completa!!!!! Pedro Fagundes