quinta-feira, 14 de maio de 2009

Resenha sobre Vapor Barato no site www.aguarras.com.br

A arte marginal brasileira sofre de uma síndrome infindável de esvaziamento. A marginalidade virou estética e nisso se diluí onde deveria ser forte, na espinha dorsal dos personagens. Seja cinema, grafite ou literatura, todos querem retratar o marginal em uma disputa que estica as bordas para os lados em busca de novos recordes. Há muitos que o fazem no conforto do lar, pois retratar a vida marginal mergulhando em seu universo cansa demais. Imagine ser marginal sem passadeira toda quarta-feira engomando o terninho? Há outros que perdem de vez as estribeiras alegando que seus personagens são mais marginais que os marginais, e não digo pelo jogo de palavras, digo pelo que já ouvi. Um marginal mais do que os demais é aquele que ninguém representa, aquele que eu vi primeiro e ninguém tasca, agora é meu, ajudante de encanador de banheiro de usina hidrelétrica, sabe como é que é. Não é que você precise andar pelos labirintos da usina para escrever sobre eles. Assim fosse, não teríamos os clássicos de Tolkien e Bradbury no cânone literário. O fato é que é preciso identificação do autor com a obra. Seja lá em que ponto obscuro de sua alma, ele precisa buscar a matéria-prima que alimentará sua mentira e a transformará numa história verossímil, com personagens palpáveis. Por isso, me dá calafrios quando pego livros com orelhas marginais, ainda mais quando sim, já andei pelos labirintos e passei pelo encanador, num drible rápido no corredor da usina, com direito a roçadinha de braço.

José Valdemar de Oliveira, felizmente, soube para onde direcionar sua escrita nos contos de Vapor Barato. Há a tal marginalidade, mas não uma imposta pelo bico da pena, e sim pelos jogos naturais da sociedade. De modo geral, todos os contos esbarram em questões da sexualidade humana, naquilo que deveria ser pura fonte de prazer e é transformado em arsenal para agressões diversas. Como Valdemar não tem medo dos assuntos que aborda, vai direto ao ponto, sem floreios. Há as gírias do mundo gay, travestis deslocados no dia que se realizam à noite, há beijos e transas heterossexuais e homossexuais. Há os estupros das cadeias, a aceitação do que acontece no mundo cão sem dó nem piedade, e que é visto enviesado do lado de fora quando acompanhado de afeto. Estão lá também as boas e velhas prostituas sem síndrome de salto alto ou de a vida me enganou.

Uma jogada interessante para evitar os clichês foi abordar os temas de dentro para fora e não com olhares externos guiando a narrativa. Claro que, como toda coletânea, há contos mais fortes que outros, histórias que funcionam melhor ou pior, seja pela aposta na diversidade (e amplitude da identificação do leitor) ou simplesmente porque nem sempre o quebra-cabeça se encaixa da melhor forma.

Dos que mais chamaram minha atenção, a cereja do bolo é Vapor Barato, que dá nome ao livro. Num parágrafo aqui outro ali juro que ouvi Gal Costa se esgoelando no meu ouvido e me distraí rapidamente,ó minha honey baby, mas o conto em si é bem elaborado na forma e no conteúdo. Conta a vida de um grupo de amigos, personagem a personagem, de modo que a individualidade de um complemente a história do outro até o grande clímax, com um final sacana para um conto que de certo modo trabalha a amizade. São todos livres ao seu modo, dentro do que se permitem, seja fumar maconha, transar com homens (mesmo não sendo gay) ou fazer um strip-tease louco em cima da mesa a ponto de soltar faíscas entre os demais e incendiar a casa. Enquanto se descobrem, o grupo encontra afinidades que os permitem, apesar de tão diferentes, se descobrirem parecidos e romperem juntos fronteiras morais e sexuais. É uma grande festa. Os que estão fora da piscina sempre acham a água sem graça. Ser feliz incomoda, descaradamente ainda mais, e todo mundo sabe que a festa um dia termina. Aqui com violência visualmente física, mas psicológica nas entrelinhas. Ponto ganho.

“Adolescentes encabeçavam a lista de seu cardápio sexual. Escolhia o alvo, fazia amizade, atraía pro bar, dava cerveja. Levemente embriagado é melhor, ela dizia. Falava que tava a fim, era direta sem receios, sem pudores. Transava oral, anal, nem aí, tá ligado? Raramente o bis com o mesmo carinha. Não dizia: transei com ele. Dizia: fiz com ele. Gíria gay que adorava. Aliás, alguns babacas juravam que se tratava de algum travesti aposentado que resolvera passar os restos dos seus dias à beira da praia, contaminando-o com suas doenças. Muita coisa ruim se falou a seu respeito”.

Noiva em Pânico é um conto curtinho e eficiente. Como o título dá a entender, brinca com o desespero de uma noiva que de repente se vê sem o noivo no meio da igreja, diante dos convidados constrangidos. Tem um ar de psicose que sustenta até o fim. Anjos de Preto é o típico conto rock star despido de glamour. Vem com drogas, valium com uísque e uma overdose que vira necrofilia. Foi o conto que me fisgou efetivamente a atenção para o livro. Não pretende ser uma pancada no estômago estilo Réquiem para um sonho, mas sabe aproveitar o clima de delírio para narrar os breves momentos de um casal. Sabe aquela máxima de “o que os vizinhos vão pensar?” Valdemar de Oliveira leva às últimas conseqüências.

“Morreu trepando. Gozou urrando, movida a ácido, e fechou os olhos para sempre. Só saí dela quando também gozei, e olha que demorou, não sei por que, demorou. Aí cheirei mais uma fileira de pó e caí ao seu lado”.

Fragmentos de uma Discussão Amorosa Outrora Subversiva faz graça desde o título. Nele, um casal tem uma discussão de momentos filosóficos alternados com “cale essa maldita boca” e “vá se foder”, na maior integração. O fato é que o homem da relação tem um tesão inabalável que a mulher aproveita até a última gota, mas que lhe dói saber que só existe ali pulsando porque ele tem uma paixão enrustida por um amigo que curiosamente alimenta o mesmo sentimento, sem se privar de suas namoradas passageiras. Apesar de levar a poesia a sério demais numa linha ou duas, dá conta da proposta inicial, sendo um bom exemplo da alternância de aridez e leveza que permeia Vapor Barato. Nada de querer ser mais marginal que a marginalidade. No rádio, o que toca é Bjork e Cássia Eller. Ainda bem.



Eric Novello é escritor e roteirista, formado no Instituto brasileiro de audiovisual - Escola de cinema Darcy Ribeiro.